A história da companhia aérea mais inusitada do mundo

Airbus Industrie Aéromaritime

O que leva uma companhia aérea a ter um status especial para os amantes da aviação? Alguma rota peculiar, algum serviço histórico ininterrupto ou um tipo especial de aeronave em operação. São tantas as alternativas que não existe resposta simples a essa pergunta.

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No entanto, é inegável que existam dois grupos quando tratamos de companhias aéreas: as gigantes do setor, que basicamente tem sua história interligada com o desenvolvimento da aviação global, e aquelas marginalizadas, considerados meros adereços na história completa do segmento.

Um destes casos certamente é da Aeromaritime, uma pequena companhia sa que muito bem poderia ter entrado para o pool das esquecidas, se não fosse um marco peculiar de sua história: de ter sido, durante os anos 70 e 80, uma das operadoras aéreas com uma das frotas mais peculiares do mundo, sendo uma das únicas a manter voos regulares dos peculiares Super Guppy.

Durante 15 anos, a Aéromaritime contou em sua frota com os singulares e carismáticos turbo-hélices, com os Guppy se tornando uma visão comum nos céus da França meridional. Tais aeronaves desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da indústria aeronáutica civil europeia, e sua contribuição, mesmo que minimizada, foi de suma importância frente ao boom da aviação comercial da década de 80.

A AÉROMARITIME E A CONEXÃO COM A AIRBUS

A Union Aéromaritime de Transport (U.A.T.), mais conhecida simplesmente como Aéromaritime, foi fundada em 1949, como uma companhia de capital misto. Os acionistas principais eram a estatal Air (40%), a companhia de transportes e serviços Chargeurs Réunis (40%), além de acionistas privados (20%).

Apesar de ter sido tecnicamente criada para atuar de maneira independente da Air , a Aéromaritime não era nada mais do que uma subsidiária da companhia de bandeira sa, atuando principalmente em rotas consideradas secundárias. Em especial, a Aéromaritime era responsável por realizar quase todos os voos entre a França continental e as colônias sas espalhadas pelo mundo.

A companhia, em seus primeiros anos, se ressentia bastante da falta de recursos e material, que eram quase todos canalizados pela empresa-mãe Air . Para se ter uma ideia, entre o período de 1949/50, a U.A.T. tinha em operação apenas três ex-bombardeiros Liberators, convertidos apressadamente para o perfil de transporte de ageiros.

Um dos momentos mais importantes da história da companhia se deu logo nos seus primeiros meses de operação. Em um apelo do governo francês para ajuda durante a crise do Bloqueio de Berlim, a U.A.T. ofereceu alguns de seus Liberators, que transportaram mantimentos para dentro da cidade sitiada. Em sete semanas de operações, as aeronaves da Aéromaritime transportaram quase 7 toneladas e meia de materiais essenciais para a capital alemã.

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Apesar de um crescimento expansivo das rotas da companhia, a Air se negava a dar o devido incentivo a companhia. Tais problemas fizeram com que a U.A.T. se desvinculasse da matriz no começo dos anos 50, obtendo, por meios próprios os primeiros aviões verdadeiramente modernos da companhia: três DC-4, ex-Peruvian Air Lines. A partir daí, a companhia deslanchou, expandindo progressivamente até ter uma frota de seis DC-4 e três DC-3 até o final de 1952.

Em 1953, a companhia entrou na era a jato, fazendo forte concorrência à Air , comprando três dos novíssimos D.H. 106 Comet 1A. A Aéromaritime era a segunda companhia aérea do mundo a utilizar os jatos, somente atrás da inglesa B.O.A.C. – no entanto, essa foi uma operação que não durou muito tempo, com os Comet sendo retirados de serviço em 1955, depois de uma série de acidentes com a aeronave.

Comet 1A Aéromaritime
A adição dos Comet 1A pela Aéromaritime, em 1953, representou um grande o para a companhia. Naquele momento, a U.A.T. contava com uma das frotas mais modernas do mundo. Créditos: Zoggavia

Progredindo para 1960, a U.A.T. se encontrava no auge de sua história. Além da aquisição de novas aeronaves (tais como alguns Douglas DC-8), a Aéromaritime ara por uma completa racionalização de suas operações, melhorando consideravelmente o lucro operacional da companhia.

A grande mudança foi o abandono das operações nas colônias e ex-colônias sas no Sudeste Asiático e Pacífico (tais como o Vietnã e o Tahiti), que aram a ser istradas por outra ex-subsidiária da Air , a Transports Aériens Intercontinentaux (T.A.I.).

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Assim, no começo dos anos 60, a Aéromaritime tinha em seu portfólio apenas as lucrativas rotas com a África. Segundo o que era informado pela companhia, eram 110.000km de conexões regulares, que cobriam o território metropolitano francês, além de voos diretos e escalas no Senegal, Costa do Marfim, Camarões, África do Sul, Rodésia, Congo, e um punhado de outras pequenas nações africanas.

Em 1963, em meio a forte pressão da Air frente às companhias privadas sas, as malhas da U.A.T. e da T.A.I. foram unificadas sob a égide da Union de Transports Aériens (UTA).

Apesar da união aparentemente representar o fim da Aéromatime, essa não seria a verdade. A fusão demorou mais do que o esperado e, até o final dos anos 60, não haviam desaparecido todos os traços da companhia, com algumas aeronaves da UTA ainda carregando o nome Aeromaritime em sua fuselagem.

Em 1970, a Aéromaritime continuava a ter sua repartição dentro da UTA e, em fins de 1973, surgiu a oportunidade de ressurgir com a marca, por intermédio de uma proposta um pouco inusitada.

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A Airbus, na época, uma companhia incipiente no ramo da aviação, se preparava para fazer o lançamento oficial do seu primeiro modelo de produção, o A300. Devido a escolha do local para se instalar a fábrica da Airbus, em Toulouse, e o carácter multinacional do projeto, com empresas subcontratadas espalhadas por diversos países da Europa Ocidental, era imperativo o transporte rápido de materiais entre essas diversas fontes, no intuito de se obter a produtividade necessária esperada pelo consórcio.

A UTA, que ainda contava em seu quadro com diversos ex-funcionários da Aéromaritime, fora prontamente abordada pela Airbus, no sentido de buscar uma parceira interessada no transporte de mercadorias para a construtora de aeronaves. Parecia um negócio ideal para o portfólio da companhia, que ia um contrato lucrativo e de exclusividade com a Airbus.

A escolha do consórcio europeu da Airbus recaiu sobre a UTA por diversas razões: a primeira era por ser uma companhia propriamente sa, que operaria majoritariamente na França e para um projeto que empenhava grande parte de recursos ses – pois cabe lembrar que 47.9% das ações da Airbus à época eram de investidores ses.

Airbus A300B
O projeto Airbus foi o que salvou a Aéromaritime de um destino obscuro na aviação. A parceria da UTA com o consórcio europeu reviveu a marca, que estava quase extinta depois de sua fusão nos anos 60. Créditos: Airbus

Além do mais, muitos dos pilotos da ex-Aéromaritime tinham grande experiência em voos de média e longa distância, que era a demanda principal da Airbus.

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Assim, em 1974, surge a mais nova subsidiária da UTA: o consórcio fundado sobre o nome Airbus Industrie – Aéromaritime, que operaria os necessários fretes com os singulares Aero Spacelines Super Guppy.

OS GUPPY E SUA OPERAÇÃO PELA AÉROMARITIME

Fundada em 1960 na Califórnia, a empresa Aero Spacelines foi a criadora do projeto Guppy. Concebida a partir de uma demanda para uma aeronave que pudesse transportar grandes sessões de foguetes da NASA para os projetos Gemini e Apollo, o primeiro Guppy surgiu em 1962, como um Boeing 377 Stratocruiser modificado com um enorme porão de carga que se expandia para cima da fuselagem.

Depois de testes bem-sucedidos do modelo, ele rapidamente foi requisitado pela NASA, com a Aero Spacelines sendo incumbida de construir outras versões da aeronave para atender a grande demanda do projeto espacial americano. Não demorou para que o Guppy ganhasse a fama de “o burro de carga dos céus”, com as prestações impressionantes dessa aeronave chamando a atenção dos observadores aeronáuticos.

Mesmo assim, com a exceção das encomendas da NASA, poucos foram os clientes interessados em comprar os gigantes da Aero Spacelines, com as finanças da companhia definhando lentamente até o final dos anos 60. Mesmo assim, um último trunfo restava na manga da companhia de Van Nuys.

Lançado em 1970, Super Guppy Turbine, ou simplesmente SGT, era uma versão expandida e melhorada dos Guppy originais. O modelo era um ‘frankestein’, combinando peças do Stratocruiser com outras de diversas aeronaves, tais como motores Allison 501 de um C-130 e um trem de pouso dianteiro de um Boeing 707.

Airbus Guppy
Os Guppy e Super Guppy se tornaram símbolos de uma época em que o transporte aéreo de cargas superdimensionadas se encontrava em sua infância. Créditos: Flickr

Apesar disso, o resultado final foi um projeto impressionante, contando com uma cabine pressurizada e um porão de carga significativamente maior que os Guppy anteriores.

Mas nem mesmo essa jogada inesperada da Aero Spacelines pôde salvar a companhia da falência. Apenas dois Super Guppy foram construídos, e seriam estas as aeronaves que posteriormente acabariam nas mãos da Aéromaritime.

Bem, aeronaves cargueiras civis de alta densidade eram coisas raras nos anos 70, e, portanto, a Airbus não tinha muitas opções quando começou a sondar o mercado em busca de aviões que pudessem atender a sua demanda especial. Era necessário um grande porão de carga que pudesse acondicionar grandes partes de aeronaves, e o projeto A300, um dos primeiros aviões wide-body do mundo, era grande em todos os aspectos.

Assim, a oferta dos Super Guppy surgiu como uma luz para o projeto Airbus. À época, os Super Guppy se encontravam sobre a posse da Tracor Inc., que comprara a massa falida, com todos os ativos, da finada Aero Spacelines – entre eles, os projetos e aeronaves não vendidas da companhia.

A Tracor Inc. certamente ficou aliviada em receber a proposta da Airbus, prontamente vendendo os Super Guppy ao consórcio europeu. Rematriculados para o sistema francês, com o SGT N211AS se tornando o F-BTGV, e o N212AS virando F-BPPA, os Super Guppy foram rapidamente colocados em operação pela companhia Airbus – Aéromaritime.

Eles foram encarregados de transportar seções do Airbus A300 (e mais tarde do A310) de diversos fornecedores de toda a Europa para a linha de montagem em Toulouse. Devido à escala de operação da Airbus, que ganhou ritmo na segunda metade dos anos 70, as aeronaves voavam regularmente cinco dias por semana, principalmente entre Toulouse, Hamburgo, Madrid, Sevilha, Bristol e Hawarden, onde se encontravam os principais subcontratados para a produção do modelo.

Em 1977, com o sucesso do projeto Airbus já estabelecido em bases sólidas, chegava o momento de expandir as operações para a crescente cartela de pedidos. Isso envolvia também o melhoramento do serviço de entrega de insumos de produção, que abarcava os voos de carga dos Super Guppy da Aéromaritime.

Para isso, a Airbus encomendou à Tractor Inc. dois novos Super Guppy Turbine, que deveriam ser entregues o quanto antes. No entanto, para cumprir o requerimento da Airbus, a companhia americana teve que dar um “jeitinho”, por assim dizer.

O principal problema é que já não existiam muito mais Stratocruisers disponíveis para serem canibalizados. Enquanto uma das carcaças do novo projeto seria encontrada em um ferro velho de aeronaves, o outro SGT foi fabricado sobre o primeiro Guppy fabricado, em 1962.

Outros mecanismos também tiveram que ser reaproveitados de aviões mais antigos, devido a problemas de compatibilidade e orçamento, tais como peças de Caravalles e Constellations. Conhecidos como SGT-F, essas duas aeronaves foram entregues entre 1982/83, compondo a frota da Aéromaritime nos anos seguintes.

Airbus Guppy
Os SGT e SGT-F da Aéromaritime prestaram um serviço inestimável para a Airbus. Sem eles, é bem provável que o ritmo de produção dos A300 e A310 ficasse abaixo do esperado, causando atrasos nas entregas. Créditos: Shaun Connor

Apesar da boa parceria estabelecida entre a Airbus e a UTA/Aeromaritime, esta começou a se tornar bem instável no final dos anos 80, com o consórcio europeu assumindo completamente a operação dos SGT e SGT-F em 1989.

Tal movimento se deveu às restrições financeiras que a Union de Transports Aériens vinha sofrendo do governo francês, com um protecionismo exagerado sobre as operações da Air . Em vistas de um provável período turbulento da UTA, que culminaria provavelmente com fusão com a companhia de bandeira sa, a Airbus decidiu terminar o contrato, preservando a integridade de suas operações com o Super Guppy.

Apesar da cisão, as aeronaves permaneceram em operação com a Airbus até 1997, quando o último voo de um Super Guppy foi operado. Em quase duas décadas de operações pela Airbus e Aéromaritime, os SGT tiveram um histórico perfeito, sem nenhum incidente digno de observação.

A nota mais triste desta história fica por conta do desaparecimento da Aéromaritime, que, depois de encerrar seu contrato com a Airbus, foi reabsorvida pela UTA. E esta também tinha suas horas contadas, com a Union de Transports Aériens se fundindo com a Air em janeiro de 1990.

Era o fim de uma das companhias mais peculiares e interessantes da Europa, que esteve presente em alguns dos momentos mais chave da aviação no século XX.

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Lorenzo Baer

Autor: Lorenzo Baer

Jornalista de carteirinha, formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem como grandes paixões o esporte e tudo que tenha haver como velocidade – tenha asas (ou não). Se tivesse que escolher um período da aviação para dizer que é seu hobby, e de maneira pretenciosa, especialidade, seria o dos velhos e carismáticos biplanos da Primeira Guerra Mundial.

Categorias: Aeronaves, Artigos, Companhias aéreas, História, Notícias

Tags: Aeromaritime, Airbus, Guppy, Super Guppy

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